27 de março de 2010


quando me sento a ver a roupa caída
de corpo dado ao vento
estou no quintal da minha avó

naquele quintal onde havia prédios altos
de varandas de cabelos brancos
de tábuas mastigadas a separar-nos dos vizinhos

naquele quintal onde o sol chegava de manhã
almoçava e ia para a praia

e me deixava perdida na roupa da corda
do ar
das nuvens


quando a minha avó tirava a roupa do vento
eu vestia as manhãs de primavera



15 de março de 2010


os sábados de manhã eram os meus favoritos
acordava abria os olhos e ficava deitada na penumbra do meu quarto
os buracos da persiana diziam-me que era dia lá fora
mas o meu dia começava ali
naquele escurinho em que tudo era possível
em que tudo me soava sempre tão bonito e poético
e eu pensava que a vida ia ser assim
uma penumbrinha de poemas
onde me podia deitar
e acordar
todos os dias
~~~~~~~~~~sem nunca deixar os lençóis tocar o chão

8 de março de 2010

sempre que andava de bicicleta
ouvia música de domingo
nublado à beira rio

uma voz arrastada que apetecia embalar
uma tuba rouca
um acordeão triste

pedalava pela marginal
e parecia que a vida era um filme a correr
enquanto os pedais puxavam a película
a preto e branco

acabou no cais
aquela claridade das fotos dos anos setenta
aquele sol antigo que ilumina
as fotos da infância
que correm nas páginas dos álbuns de cartolina preta

3 de março de 2010


~descobri que o lápis toca na folha de papel e se soltam palavras de carvão que se sentam na fina linha azul e se deixam estar ao sol
~~descobri que as palavras ao sol podem ser trigo em pequenas espigas
~~~descobri que as espigas podem ser colhidas, tocadas, desmanchadas em pequenas sementes que se espalham ao vento
~~~~descobri que o vento pode assobiar, soprar, levar-nos para longe ou deixar-nos perto com a cabeça a esvoaçar
~~~~~descobri que a cabeça pode ter sementes ao sol espigas ao vento carvão em linha azul
~~~~~~~descobri que as minhas searas não têm ceifeira
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ e ainda assim me dão o pão meu de cada dia



1 de março de 2010

ele sempre gostou de cartas
ela sabia que ele gostava de cartas
não tinha um tipo favorito, mas se fossem de amor,
os olhos dele brilhavam mais

ele esperava por elas todos os dias sem lhe dizer
ela escrevia-as todos os dias sem lhas enviar
guardava-as à espera que o sol brilhasse mais naquele dia

ele esqueceu-se como era receber uma carta dela
ela esqueceu-se da alegria de lhe enviar uma carta a ele
esqueceram-se de que o sol brilha sempre mais
quando as cartas chegam

se ele soubesse que ela as escrevia
se ela soubesse que ele as queria
teriam lido as cartas juntos